Se o ato de ver precede as palavras e estabelece nosso lugar no mundo, a fotografia assume o importante papel do ´contador de histórias´, oferecendo ao expectador um conjunto de informações, significados históricos e possibilidades infinitas de interpretações.
Neste sentido, o presente artigo apresenta um breve relato do processo de construção de um atlas de imagens, o qual intitulei “Reflexo”, desenvolvido durante a disciplina Estudos Curatoriais do Mestrado em Gestão em Cultural da ESAD.CR[1]. Antes de falar de suas etapas de criação – Recolha de Imagens, Edição e Montagem – é preciso situarmos o cenário no qual o processo foi realizado.
Para o desenvolvimento do atlas, dois pré-requisitos foram lançados: a recolha de imagens deveria ser realizada em veículos/meios de imprensa nacional e/ou internacional, e não poderia haver pré-definição de temas, mas uma recolha livre de pré-conceitos, referências ou qualquer outra base teórico-imagética. Levando em consideração que o momento era por inteiro de novidades (novo país, nova universidade, novo curso, novas notícias, nova casa, novos amigos, novas experiências... novas...), pois resido há pouco mais de quatro meses na cidade de Caldas da Rainha, situada no Distrito de Leiria, oeste português, a decisão pela imprensa local foi quase imediata. Era uma forma de “conhecer” e “interpretar” a nova realidade. Optei também por veículos impressos, chegando aos jornais “Correio da manhã”, “Gazeta das Caldas” e “Jornal das Caldas”, ambos com veiculação de notícias locais, nacional e algumas poucas internacionais.
O processo de recolha de imagens durou cerca de dois meses. Apesar de vários temas se apresentarem logo na primeira vista aos jornais, a exemplo do futebol, dos escândalos envolvendo o jogador Cristiano Ronaldo, do rumores, à época, sobre os candidatos presidenciais brasileiros, principalmente o que o presidente eleito Jair Bolsonaro poderia representar para a economia mundial, entre outros, a ideia era ir guardando ‘figurinhas’, todas que de alguma maneira me despertassem sentimentos (bons ou ruins). Ao todo foram recolhidas cerca de 120 imagens entre fotografias (a maioria) e ilustrações.
No dicionário da língua portuguesa[2] atlas é um volume de ilustrações elucidativas de um texto ou de uma área do conhecimento. Estudiosos afirmam que o primeiro atlas teria sido produzido por Cláudio Ptolemeu (150 d.C), um cientista grego que viveu em Alexandria (Egito), reconhecido pelos seus trabalhos em matemática, astrologia, astronomia, geografia, cartografia e ótica. Deixou para a humanidade a obra Geographia, que reúne os primeiros conhecimentos geográficos greco-romanos, e o tratado Óptica, um conjunto de estudos sobre reflexão, refração, cor e espelhos de diferentes formas. As interpretações de Ptolemeu eram um misto de ciência e misticismo. Ocupava-se dos estudos da localização e movimento dos corpos celestes, mas também da associação da localização dos mesmos com a adivinhação. E é da mitologia grega que deriva o termo atlas, uma analogia ao titã Atlas, que punido por Zeus teria sido fadado a carregar eternamente a Terra em suas costas.
A geografia foi o campo que mais se apropriou desse conceito amplo de atlas, agregando à cartografia as representações de mapas e outras informações de determinada região, legando ao matemático, geógrafo e cartógrafo Gerardo Mercator (1585) o título do primeiro pesquisador a usar a palavra no sentido de coleção de mapas.
Ao longo do tempo, estudiosos e pesquisadores modernos inseriram a cartografia como metodologia de pesquisa para diferentes áreas do conhecimento, inclusive no campo das ciências humanas e das artes. Essa busca constante por sentidos e representações, levou o historiador Aby Warburg[3] a construir o seu Mnemosyne Atlas, estabelecendo um sistema de similitudes a partir de um arquivo de imagens, reconstruindo direções e estabelecendo suas próprias relações na construção de uma memória coletiva e definindo um método de sobrevivência das imagens para lá do tempo histórico.
Fundamentado na teoria da memória coletiva, o Atlas de Warburg foi seu projeto mais ambicioso, com o qual pretendia estabelecer "cadeias de transporte de imagens", linhas de transmissão de características visuais através dos tempos, que carregariam consigo o pathos, emoções básicas engendradas no nascimento da civilização ocidental.
Nunca se discutiu tanto o papel da arte e as ciências da cultura para se compreender a humanidade. A contemporaneidade possibilitou infinitas (re)interpretações do mesmo e recuperou em Warburg o método revolucionário da associação de imagens para refletir questões como memória, arquivo, enquadramento, esquecimento, consciente/inconsciente, montagem, discurso, espaço/tempo, e ainda, pensar o “espaço museu” na atualidade.
No processo de construção do presente trabalho foi necessário um parêntese para compreender que a fotografia é uma linguagem universal e está presente na maioria das comunicações e trocas de informações realizadas no mundo, construindo histórias, realidades e identidades. É inegável o seu poder de estabelecer uma comunicação direta com o expectador, sem barreiras de língua e de raça, levando sua mensagem e interagindo com o outro pelos canais da emoção e do lúdico, transformando-se em fontes documentais, instrumentos de expressão e memória.
Para Marli Albuquerque e Lisabel Klein (1987) a utilização da imagem, animada ou não, tornou-se comum como forma de comprovar ou acrescentar informações às nossas observações cotidianas. A TV, os jornais, as revistas, etc, diariamente, nos trazem conteúdos completados por imagens, e não raramente, as imagens assumem, em si, o conteúdo básico das informações que nos são transmitidas.
Na esteira de Warburg, trabalhos de diversos historiadores e fotógrafos contemporâneos serviram de referência para o processo de edição das imagens recolhidas e para montagem do atlas. A referência maior foi Gerhard Richter[4], que desde os anos 1960 reúne uma série de recortes de jornal, ilustrações de revistas e livros de fotografias de família, o que se tornou mais tarde o projeto ATLAS.
A maioria de nós está familiarizado com imagens como parte de um continuum, uma série de acontecimentos sequenciais e ininterruptos que tem em seu ciclo um ponto inicial e um fim. Sejam fotos de família em um álbum (ou talvez um arquivo digital agora) ou o fluxo contínuo e amplamente supérfluo de imagens de mídia que encontramos diariamente, quando isoladas desse ciclo de acontecimentos, ou colocados em uma ordem e disposição específicas, como Richter fez, as imagens se tornam estranhamente presentes novamente; agora passam a ter um lugar fixo, um contexto único, mas que possibilita a interpretação a partir de quem as observa. Essa talvez seja a característica mais relevante do ATLAS de Richter: ser aberto a infinitas interpretações e análises.
E foi buscando essa aliteração mnemônica de Ritcher, que a segunda e terceira etapas do presente trabalho – edição de imagens e montagem – foram construídas. Os temas foram surgindo ainda no processo de recolha de imagens, mas não foram determinantes para o mesmo, e nem possuem relações entre si, apesar de possibilitarem a construção de uma história em quatro atos.
A categorização e titulação dos painéis tiveram influência em Peter Piller[5] e seu Archive, uma verdadeira enciclopédia de fotografias classificadas de acordo com o design e correspondência de conteúdo. Seu arquivo é baseado em uma coleção de cerca de 6.000 fotos recolhidas de jornais nos anos 1994/2005, somadas a uma coleção de fotografias aéreas produzidas por uma empresa na década de 70 na Alemanha, que ele recebeu como doação em 2002, além de cartões postais históricos, achados da internet e trabalhos próprios. Das coleções surgiram várias compilações temáticas, com títulos curtos e concisos, como "Sleeping Houses" ou "Shooting Girls".
Os quatro painéis que resultaram o trabalho final sugerem uma intenção narrativa a partir de imagens de eventos públicos, pessoas do cotidiano, pensamentos específicos, ideias e proposições que coexistem, retornam e são reprisados em contextos diferenciados.

O primeiro painel – Olhe [o mundo ao seu redor] – foi construído na simplicidade complexa do ato “olhar”. Pelo o que observamos e por quem nos observa. Os olhos são as ferramentas com as quais o cérebro cria o campo visual, e no sentido mais amplo de visão (de percepção visual), é através dos olhos que, primeiro, armazenamos as nossas informações do mundo. Ao olhar para um objeto, o cérebro interpreta não só a sua forma, mas faz uma combinação de informações arquivadas (memória), criando um sentido (sentimento) para o que o olho vê (cores, movimentos, etc).
A arte é uma expressão do “olhar”. Possibilita ao expectador perceber e interpretar seus produtos, mas também seu próprio mundo. Quando Henri Cartier-Bresson diz, “fotografar é colocar na mesma linha de mira, a cabeça, o olho e o coração”, está falando também do ato de olhar. Segundo Daniela Ávila Malagoli, pesquisadora e comunicadora social, ao nos expressarmos sem precisar falar, imprimimos emoções, sentimentos, adjetivos e contextos que nos permite perceber e compreender a mensagem com mais profundidade. Uma troca de olhares permite interação entre as pessoas, e fornece uma sensação de pertencimento. A partir de outro olhar nos constituímos, percebemos e ampliamos a relação com o mundo ao redor.

O segundo – Empodere-se [assuma o controle] – resulta de uma reflexão sobre a atual situação social e política no Brasil (minha terra natal). Com um governo de extrema direita, que se mostra excludente com relação às minorias, o empoderamento individual e social é uma ação quase de sobrevivência. Empoderar é potencializar a conscientização civil coletiva sobre os seus direitos, buscando transformações nas relações sociais, políticas, culturais, econômicas e de poder. Esse painel é também um questionamento, a que tipo de “arma” cada pessoa utiliza para garantir o seu lugar ao sol.

Seu corpo [suas regras] é o título do terceiro painel, que sugere uma reflexão à erotização do corpo feminino e ao corpo como produto e moeda de troca. Os reflexos sociais e psicológicos dessa “banalização” trazem uma discussão antiga que se espalha nos novos formatos e modelos sociais. As imagens que foram se mostrando durante o processo de recolha, remetem a um “comércio” próprio, uma busca do prazer, mais social do que pessoal, do status, da exposição exacerbada e a qualquer custo.

O quarto e último painel da série – Toque [com amor] – traz as mãos como ferramenta principal de acesso ao outro. O ato de tocar está relacionado diretamente às sensações da pele e a cinestesia (sensibilidade aos movimentos). Confirma a existência de uma realidade objetiva, no sentido de que é alguma coisa externa, que não eu próprio. É contato imediato. É a mão que “dá” e “tira”. Configura, por um lado, as relações humanas afetivas, a paz entre nações, a (re)conecção com o habitat natural, e por outro, traumas psicológicos, desordem e a morte. Se configura também, como a maior expressão tecnológica do século 21. Touch está diretamente relacionado às transformações sensoriais que o cérebro vem sofrendo ao longo dos últimos anos.
Finalizando o processo de criação do atlas Reflexo, os painéis foram montados em papel cartão em tons variados de vermelho e laranja. Não por acaso, as cores quentes causam impacto e intensidade. Está ligada à energia, força, poder, entre tantos outros sentimentos que estimulam a mente e as emoções. O cientista alemão Wolfgang Von Goethe, que criou a Teoria das Cores, diz que a cor não depende somente da luz, mas sim da percepção que temos diante a um determinado objeto.
O atlas é uma, das inúmeras interpretações possíveis, das imagens que o compõe. É um campo aberto para releituras, reflexões, compreensões, aproximações... a origem de cada imagem é ausência, justamente porque ela só faz sentido no contexto de sua (nova) representação.
[1] Escola Superior de Artes e Design do Instituto Politécnico de Leiria – www.ipleiria.pt
[2] "atlas", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/atlas
[3] Abraham Moritz Warburg (Hamburgo, 13 de junho de 1866 — 26 de outubro de 1929).
[4] Gerhard Richter (Dresden, 9 de fevereiro de 1932) é um pintor alemão, cuja as obras fundem a iconografia jornalística e retratos de família com um realismo austero baseado na fotografia. www.gerhard-richter.com.
[5] Peter Piller (Fritzlar, 5 de janeiro de 1968) é um artista alemão contemporâneo das artes visuais. Seu arquivo Peter Piller, cujas imagens ele compila em séries temáticas, é um de seus trabalhos de maior relevância. De 2006 a 2018, ele foi professor de fotografia no campo da arte contemporânea na Academia de Artes Visuais de Leipzig. Desde outubro de 2018, ele lidera a classe de arte na Academia de Arte de Dusseldorf. www.peterpiller.de/ .